terça-feira, 27 de novembro de 2012 | By: Unknown

A história de um sorriso

Eis que agora me falha a memória de um dia remoto, lembrança de alguns dias. Mas é que a mente é assim: Esquece e reserva o que há de mais dolorido, para ser lembrado apenas com muito esforço por aqueles que realmente gostam de revirar, reviver, teimar. O que faço agora é sob aviso, ciente dos riscos; E se queres saber, fica assim também avisado.
Fazia Sol, ou talvez chovesse. Ainda não havia escurecido, mas pode ser que a Lua já apontasse lá no céu, irrelevante. Todas as lembranças mais distantes, faço questão de não mexer. Esta é a história de um sorriso. Sim, de um sorriso um tanto esforçado, meio de lado, da cor do asfalto, meio sem dentes.
Ocorreu-me entre dias iguais, nada demais. Caminhava e voava, sonhava grandemente enquanto mentes um tanto vazias discutiam algo que não sei dizer. Parara de ouvir. Entre uma peça, um livro, um amor, uma música, um cantor; entre o meu riso e o outro lado da rua, parou-me o sorriso. Ainda escondido, não me encarara; ao contrário, mirava e remexia a comida, assustado e acostumado, sei que quase latia por causa do barulho perturbador de seu almoço. Mas não era cachorro. Ao contrário do que viam, era gente. E gente feliz, sim. Era gente lúcida, pura, feliz. Encarei-o eu, tropeçando em meus sonhos e planos, olhei para mim. E depois para ele. Todas as outras mentes insanas viram e partiram para longe do animal. Meus pés prenderam-se diante da figura, que protegia o alimento conseguido a muito custo, sei bem. Meus olhos não se moviam, por mais que minha mente implorasse e meus pés quisessem colaborar.
Mirou-me o policial, assustou-se e quase se aproximou. Miraram-me as pessoas, hipnotizadas pelos meus pés imóveis. Mirei-o. Tirei da bolsa o que tinha, senti-me mal por ser pouco, quase obriguei olhos e pés a desviarem o caminho, era eu tão falha que logo aquele dia não tinha nada demais a oferecer. Quis mesmo assim, envergonhada, culpada, dar tão pouco a quem menos tinha. Olhos e bocas entre-abertas se mexiam e apenas me viam. Forcei a fala, e falei meio baixo, sem graça, à gente ajoelhada no chão.
- Oi ... - Mirou-me os olhos que sorriam.
- Oi. - Desviou-se para a comida. Estava tão acostumado a não ser visto, ouvido, que pensou ser de mentira.
- Olha, não é muito, sabe, me desculpa. Mas você quer? Eu não abri, juro! Está limpinho...
Foi então que de verdade, pela primeira vez no dia, aqueceu-me, invadiu-me, respondeu-me, mirou-me, acordou-me, assustou-me, e tudo o mais quanto possa imaginar, foi então que apareceu-me o sorriso, por 5 segundos. Estendeu-se a mão, que sorria. Aproximaram-se meus pés, que outrora não se mexiam, estenderam-se minhas mãos, vacilantes. Apenas os olhos que teimavam em não obedecer, continuavam a castigar-se, castigar-me.
Virei-me, enfim. Caminhei dois passos hesitantes, e pararam com o chamado de uma voz que podia sentir, também sorria.
- Leve isso, quer? - Mostrou-me outro pacote, fechado, maior. Senti-me extremamente mal pela miséria que tinha para oferecer naquele dia. Só depois é que me veio em mente o que aquele sorriso fazia.
- Não, obrigada. - também o meu sorriso respondeu sorrindo.
- Tem certeza? Está limpinho... - respondeu-me com o que eu usara segundos antes.
- Não, obrigada. Fique com você...
Nada respondeu-me, senão com dentes cor do asfalto, que abriam-se em curva, de lado. E com olhos brilhantes, que não sei definir.
- Adeus. Até logo!
Posso dizer, que ao sair dalí e recobrar o juízo, pude perceber o quão deprimente e trágico era aquele sorriso. Ele me dizia, silenciosamente, sussurrando-me um segredo a muito escondido:
Isto aqui é minha vida, e tortuosamente eu vivo, sorrindo.

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